“Fico retraída e me esquivo,
mas, no fim, acabo cedendo. Boa parte das vezes machuca, e isso acontece com mais
frequência quando ele bebe. Para evitar discussões, fico imóvel. Só tenho
vontade de que acabe logo.” Casada há 10 anos e mãe de três filhos, Ana Carla*
é violentada por quem
ama.
A
história de abuso sexual na casa em Valparaíso, em Goiás, repete-se nos lares
do Brasil e do resto do mundo, e causa, além de danos físicos, sequelas
emocionais, como pânico, angústia profunda e depressão.
Levantamento
da Organização das Nações Unidas (ONU) com pouco mais de 10 mil homens de seis
países da região Ásia-Pacífico indicou que 24% deles admitem ter estuprado uma
mulher, incluindo a parceira, ao menos
uma
vez na vida.
No Brasil,
de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 41,2 mil casos de abuso sexual
foram denunciados em 2010 – 168% a mais do que em 2005.
Apesar
do crescimento das queixas, especialistas acreditam que as vítimas do estupro
cometido dentro de casa – que representa boa parte dos casos – continuam caladas.
Entre
os resultados do silêncio e da violência, segundo o psiquiatra forense Talvane
de Moraes, está um impacto negativo à saúde mental. As
mulheres
violentadas ficam tão fragilizadas que os estragos chegam a comprometer o
recomeço daquelas que optam pela separação.
“É o
que chamamos de estresse pós-traumático, quando a mulher não consegue superar o
ocorrido, influenciando de forma negativa a vida sexual futura, já que pensa
não poder encontrar ninguém que a trate com carinho”, explica o membro da Associação
Brasileira de Psiquiatria (ABP). “Se a pessoa tiver histórico de baixa
autoestima, pode até atentar contra a própria vida”, complementa.
Emma
Fulu, especialista em pesquisa de parceiros para a prevenção em Bangkok, na
Tailândia, chama atenção para outra implicação à saúde da mulher causada pelo
parceiro que pratica a violência sexual fora de casa.
“Se
pensarmos nas implicações significativas para infecções causadas
por
doenças sexualmente transmissíveis em razão da penetração no estupro, a mulher
fica ainda mais vulnerável. E isso inclui o HIV”, alerta a participante do
estudo publicado na Lancet.
Apoio
psicológico, incluindo a reeducação do comportamento sexual, faz parte do apoio
necessário à vítima do abuso sexual.
Segundo
Talvane de Moraes, a maioria se sente inibida, achando que outros homens
repetirão a violência.
“O
indicado é a psicoterapia e, nos casos de depressão profunda, podem ser
receitados medicamentos.”
O
psiquiatra também chama a atenção para o comprometimento psicológico e social
do abusador.
“São
geralmente pessoas que acham que não têm condições para entrar em um jogo de
sedução. Por isso, recorrem à força física para ter uma relação sexual”,
explica.
Ana
Carla* diz que fala sobre o assunto com as amigas e que muitas delas vivem o
mesmo problema.
“Mas
não vou colocar meu casamento a perder por causa disso. Sei que é considerado crime,
mas, assim como tantas outras, é melhor passar uma borracha até a noite
seguinte”, confessa.
De acordo
com a Aparecida Gonçalves, secretária Nacional de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres (SPM),
o silêncio também passa por questões econômicas e culturais.
“A
maioria não denuncia porque tem medo. Ainda existe a questão cultural de servir,
de o sexo ser uma obrigação.
Mas
tem que existir a concepção de que a relação sem consentimento é crime e deve
ser levada às autoridades competentes.”
‘Interesse
universal’
A
sondagem feita pela ONU durou quatro anos.
Agentes
visitaram lares de Bangladesh, Camboja, China, Indonésia, Papua-Nova Guiné e
Sri Lanka de áreas urbanas e rurais.
Eles
não perguntaram aos 10 mil participantes se haviam cometido algum estupro, mas,
por exemplo, se já haviam forçado uma mulher que não era a esposa ou namorada a
ter relações sexuais.
Onze
por cento dos entrevistados relataram ter cometido o crime ao menos uma vez na
vida.
A
taxa subiu para 24% quando foram consideradas a esposa, a noiva ou a namorada.
Os
pesquisadores constaram ainda que homens com histórico de vitimização,
especialmente abuso sexual na infância ou coagidos sexualmente, tinham mais
probabilidade de cometer o crime.
Emma
Fulu avalia que os resultados são uma prova robusta da extensão, da natureza e
do efeito da violência praticada contra as mulheres, o que faz necessário o
reforço na prevenção desse tipo de crime.
“Essa
é uma pesquisa com resultados notáveis e de interesse universal porque metade
da população do mundo vive nas regiões estudadas, e, embora os países sejam culturalmente
diversos, não teve diferenciações significativas quanto ao abuso sexual.
Seguimos
normas éticas e de segurança internacionais rigorosas que permitiram aos homens
responderem às perguntas sobre estupro. Se o crime vem acontecendo dentro de
casa, é preciso repensar a estrutura da família”, avalia.
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